Céu, cinza e nada...

06:13

Por Marion Lencaster



Não me lembro da última vez que te vi. Creio que ouve uma ocasião, depois do fim da miséria e do sofrimento - pelo menos da tua miséria e sofrimento, e eu ficava feliz por isso – que me pareceu ter encontrado os teus olhos no meio do mar de ruas cinzentas e decrépitas em que estava mergulhado.
Mas isso foi um sonho… Não acredito, pura e simplesmente, que tenha sido real. Não havia motivo para estares ali… Não mais… Não depois de tudo o que fiz e de me ter tornado quem era. Desistiras de mim, disso eu tinha certeza. E, apesar da dor intensa que carregava, sabia que parte de mim – uma grande parte – deixara de conseguir sentir o que quer que fosse senão desespero. Era pó, já nessa altura. Era pó e vivia para ele… Para o pó branco que fora o meu sonho e a minha condenação.

Uma vez, devia ter uns cinco anos, perguntaram-me pela primeira vez o que queria ser quando fosse grande. “Pássaro!“, disse eu. Ainda me lembro das gargalhadas a ecoarem por toda a sala, como se tivesse proferido o maior disparate do universo. Insisti. “Quero ser pássaro! Não há mal nenhum em ser pássaro! Os pássaros chegam ao céu! É isso! Eu quero chegar ao céu!”. As minhas afirmações produziram mais uma onda de gargalhadas. Lembro-me de alguém ter mencionado que eu deveria querer ser astronauta. Eu disse que não. Não queria chegar à Lua, queria tocar o céu. Porque será que ninguém entendia? Ninguém nunca entendia…

Um dia, enquanto me deitava, perguntei ao pai o que teria de fazer para tocar o céu. Ele sorriu, dizendo que tal não era possível. Não acreditei, insistindo na pergunta que me atormentava o espírito desde sempre. Ele repetiu a afirmação com uma frase cujo final deixara ficar em aberto. Pareceu ficar pensativo por momentos, antes de acrescentar: “Bem… há uma maneira…”. Fiquei tão entusiasmado que quase saltei da cama, perguntando repetidamente como. Ele respondeu com uma única palavra. “Sonhando…”.

O meu rosto tornou-se uma máscara de desilusão. Não queria um sonho, queria a realidade. Virei-me na cama, impedindo-o de dar-me um beijo de boa noite. Não lhe falei durante uma semana.

Ele estava tão certo e eu tão errado… Diz-lhe, por favor, que eu estava completamente errado. Que lamento… Por tudo…

Pensava que o sonho se tornaria realidade quando, aos doze anos, fiz a minha primeira viagem de avião. Não me lembro de maior decepção do que essa. Não me quero lembrar de tão grande decepção. Fiquei todo o tempo à janela, parado, fitando um céu que se encontrava acima de mim. Longinquamente acima de mim, por mais alto que o avião voasse. Não mergulhei no etéreo azul que imaginava desde sempre. Não me vi rodeado da névoa cristalina pura e anil que a minha mente idealizava desde que me lembrava de existir.

Acho que foi nesse momento que desisti. Ou que pensei desistir do sonho de tocar o céu. Recordo-me de passar noites em claro, tentando convencer-me a mim mesmo que não era algo real, que tal não era possível, simplesmente. Lembro-me também de como tudo terminou com uma única lágrima que escorreu calma e solitariamente para a almofada. Desisti de ser eu… Abdiquei do que era… Desisti de tocar fisicamente o céu. Ou pelo menos era o que pensava na altura. Rapaz tão tolo… tão inocente… tão…

A partir daí fiquei vazio. Egoistamente vazio… Preso num mundo só meu e que eu queria tornar real todos os dias. Fechado no armário privado a que todos atribuíram o nome de adolescência. Todos menos eu. Não sei porquê… Nunca percebi o porquê de sentir que não pertencia àquele mundo onde tocar o céu era impossível. Os pais aproximaram-se vezes e vezes sem conta, numa tentativa de saber o que sentia e no que me estava a tornar. E eu afastava-me, como um cão vadio que vê alguém a agitar um pau por cima da sua cabeça. Só queriam o meu bem… Se tivesse entendido isso na altura, talvez não fosse tarde demais… Talvez, e só talvez, ter-me-ia apercebido de toda a estupidez e incoerência com que regia uma vida que não podia chamar de minha. Porque agora entendo que as vidas nunca são exclusivamente do seu proprietário.

Comecei como todos começam… Sei que todos começam assim, pois aprendi a ver-lhes nos rostos palavras que a boca não poderia ou saberia dizer. Comecei porque quis, porque tudo o que tinha – e agora apercebo-me do quanto tinha – não era simplesmente suficiente para cobrir uma existência que, egoistamente, considerava decrépita. Não o era, mas eu nunca o soube… pelo menos até ser tarde demais. Deixei-me levar no enlevo de palavras promissoras e enganos encantados, enredando-me numa teia de falsas ilusões. Eram deuses que me prometiam o céu! E eu comprei-o. Comprei o céu a peso de ouro, sob a forma daquele pó branco que me sacudiram debaixo do nariz. E o facto é que o tive.
Alcançara o céu, pela primeira vez em todos os anos de buscas frustradas e palavras de censura. Tocara os tons de azul por que tanto ansiara nos meus sonhos de criança, sem saber – ou sem querer saber - que estes eram tão ou menos reais do que aqueles com que sonhara desde sempre. Não me apercebia que tudo eram ilusões criadas pelo torpor da droga que me percorria as veias, enganando o cérebro e entorpecendo os sentidos. Não queria de facto, perceber, e não me interessava que tal não passasse de uma imagem criada por algo externo à realidade. Para mim era real, tão real como os pais, ou Sílvia… Sílvia… que subitamente parecia menos importante do que alguma vez fora. A única condicionante que a minha realidade alternativa possuía, era o facto de ter prazo de validade. Apenas umas horas de pura felicidade e tudo acabava, para dar lugar ao que eu chamava “o meu triste e tedioso dia”.

Tens visto a Sílvia? Incrível, como também não recordo a última vez que a vi. Sei que, nos últimos meses, esteve longe… Num qualquer outro país, talvez. Estava feliz! Sei que estava feliz e, no entanto, não me lembro de como sabia que assim estava. Sei apenas que sorri por ela. Sorri… Como há muito tempo não fazia. Se a vires fazes-me um favor? Diz-lhe apenas que ela foi o meu sol no meio do céu que eu nunca consegui tocar. Fala-lhe da primeira vez que a vi e de como fiquei encantado com a sua forma graciosa de andar… com o modo como agitava as pulseiras quando sacudia o cabelo com as mãos para que esvoaçasse ao sabor do vento… como o seu olhar me desconcertava, fosse em que situação fosse. Pede-lhe perdão por ter sido o maior idiota que a sua existência lhe poderia ter colocado no caminho. Por não perceber que o céu estava ali, à minha frente… Por não entender que tocava, de facto, o céu, de cada vez que os meus lábios roçavam os seus, sempre que a tomava nos braços e estremecíamos com aquele simples contacto. Porque agora entendo que ela foi, sim, a experiência mais aproximada de céu que alguma vez tive. Que a cama em que nos deitávamos era o firmamento e ela um anjo envolto na suave névoa dos lençóis brancos. Não, não te rias – porque sei que estás a rir de embaraço perante estas palavras – diz-lhe apenas, sim? Ela entenderá. Pede-lhe também o meu mais absoluto e sincero perdão. Não digas mais nada sobre isto, não menciones os momentos maus… Não quero que ela sofra novamente ao recordar os horrores pelos quais passou enquanto estávamos juntos. Ou antes, enquanto eu estava comigo mesmo e ela tentava acompanhar-me e tirar-me de um mundo do qual eu nunca quis sair. O mais curioso é que ela sabia disso. Sempre soube. E no entanto… Pede-lhe perdão. Apenas isso. Não valerá a pena remexer nas memórias.

Hoje, olhando para trás, vejo quão vertiginosamente rápido tudo foi. Em poucos meses, tornara-me consumidor diário de algo que, para mim, valia mais do que qualquer outra coisa à minha volta. E, no entanto, parecia ser o único que não admitia tal facto, continuando a encarar a fulgurante ilusão como uma distracção do dia-a-dia, um simples passatempo sem a importância de algo que muda a vida e a personalidade. A verdade é que já não era eu… Tu sabes o quanto mudei! Estavas lá, todos os dias, a meu lado, lutando por mim desde o início, quando nem os pais nem Sílvia sabiam da minha nova realidade. Foste a primeira que se apercebeu. Talvez pelo modo como eras sempre vigilante em relação a mim, ou porque eras das poucas pessoas a reparar no meu verdadeiro olhar. Porque sabias que sempre tive dois olhares diferentes em que um era destinado ao mundo que me rodeava e outro era unicamente meu e teu, e, alguns dias, de Sílvia. Percebeste-o e falaste comigo, tentando impedir-me não só com palavras mas também através de gestos carinhosos que tinham como objectivo mostrar-me que a realidade era melhor do que qualquer ilusão comprada. Não te ouvi. Não quis, simplesmente, ouvir-te. E tu sabias… Sabias que quando todos se começavam a aperceber das horas que passava fora ou no meu quarto, completamente sozinho, sem sequer te acolher dois míseros segundos no meu colo - apesar de já não teres idade para essas coisas - já era tarde demais para mim ou qualquer um de nós. Mesmo antes do início dos roubos furtivos ao dinheiro do esconderijo da cozinha ou das descaradas extorsões feitas aos pais, por entre gritos e lágrimas de desespero. Era tarde demais, pois começara a sentir os efeitos que a ressaca tinha sobre um corpo e uma mente que já não controlava. A realidade distorcera-se e tornara-se ficção… inferno, talvez seja um melhor termo. Consumia para me manter longe de todos os que me amavam e se preocupavam. Para fugir de uma realidade que deixara de ser a minha. E, mesmo assim, estavas ao meu lado sempre que fazia tudo errado, acolhendo-me com um perdão que sabia não merecer… Até um dia…

- Não és mais meu irmão.

Foi a última frase que me disseste, a última vez que me falaste e, talvez, a última memória plenamente clara que tenho dos últimos meses. Nesse dia, o meu mundo ruiu definitivamente. Cometera demasiados erros para que me desculpasses, calcara a linha de perdão desenhada pelo teu coração. Amavas-me demais para estender a linha, e era agora, e somente agora, que o percebia. Recordo-me de uma simples lágrima a escorrer-me pela face, antes de virar costas e sair, sem rumo, sem vida, para nunca mais voltar.

Não me lembro da última vez que te vi. Creio sinceramente ter visto o teu rosto algures no meio das ruas abandonadas que se tornaram o meu lar. Parecias ansiosa, perscrutando com o olhar, procurando intensamente algo. Por momentos, pensei que me procuravas para me tomares nos braços, aconchegando-me e dizendo-me que tudo ia ficar bem. Por momentos, pensei ouvir promessas de auxílio e de socorro nos teus lábios. Mas isso foi um sonho… Não havia motivo para estares ali… Não mais…

Não havia motivos para ali estares, mesmo depois do derradeiro fim… Mesmo quando eu jazia, sem ar e sem vida, dentro da caixa de madeira a que chamavam caixão. Foste a única… A única pessoa que me veio ver e chorar sobre o meu corpo morto e destroçado. Diz-me, irmãzinha, porque foste? Porque foste quando ninguém mais apareceu ou te acompanhou para te dar o ombro, apoiando-te e protegendo-te das dolorosas recordações? Mas mesmo assim foste… Derramando lágrimas por quem não as merecia, ajoelhando-te ao meu lado e passando a mão delicada pelo meu cabelo. Estiveste lá, a fazer cumprir a minha única vontade. Aquele desejo que apenas tu sabias, naquele dia, ainda eu era teu irmão, em que te confessei a minha ânsia de tocar o céu. Sei que, a partir do momento em que lá apareceste, decidiste que me perdoarias, ainda que inconscientemente.

E hoje vi-te. Continuas aí, a meu lado, ajoelhada sobre a memória de um corpo sem vida e de lágrimas de dor, tentando encaixar o teu coração despedaçado como um quebra-cabeças sem resolução aparente. Sei que, quando o resolveres, finalmente, terei um pouco do teu perdão. Sei também que esperarei. Esperarei por ele, tal como esperei a liberdade que o vento me trouxe, ao pegar as cinzas do meu corpo com o desvelo de um pai que carrega pela primeira vez o filho recém-nascido. Aguardarei calmamente o momento em que ele sussurre aos teus ouvidos a minha mensagem. E então talvez, e apenas talvez, o teu coração me possa conceder o teu perdão definitivo e a minha voz te possa murmurar, verdadeiramente, este simples segredo:

“Encontrei o céu…”

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Conto escrito para o II Concurso "A Frase" do Fórum Portugal Creative. Ficou em 2º lugar na classificação.

Baseado na frase: "É comum perder o bom por querer o melhor." de William Shakespeare

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